Análise e Comentários da obra "Auto da Barca do Inferno"



Auto da Barca do Inferno foi publicada entre a Idade Média e a Idade Moderna, em 1517, em um período de transição chamado Humanismo.Os autos eram as peças mais famosas de Gil Vicente, que escreveu várias comédias baseadas no lema latino “Ridendo castigat moris” (Rindo corrigem-se os costumes). 

A peça que iremos analisar, tinha como objetivo final, retratar a sociedade da época, fazendo assim alegorias de camadas ou classes sociais, com o intuito de trazer um ensinamento ou moral baseado nos ensinamentos cristãos. Usando a comicidade, a mensagem era levada e os audientes, que em grande maioria vivia da forma que Gil Vicente criticava, davam risada das suas próprias ações.

O início da história se dá com duas barcas em um porto, a Barca do céu, que leva à salvação e vida eterna, e a Barca do inferno, que leva ao tormento e sofrimento eterno. Ambas baseadas na concepção cristã que, o que você faz em terra, determinará o seu destino. O personagem inicial é o Diabo, que aguarda as almas para levá-las à “Ilha Perdida” juntamente com seu companheiro. Do outro lado, o Anjo, que espera os que possam embarcar para a vida eterna.

O enredo desenvolve-se com vários personagens, que tentam barganhar sua salvação de todas as formas,  mas no final somente o Parvo e os Quatro Cavaleiros são salvos, pelo coração puro e sua lealdade a Deus, enquanto os outros, que não viviam de acordo com sua "vida cristã", são condenados. 

O auto nos traz permite fazer comparações com os dias de hoje, tendo em vista os personagens, que não somente são os mesmos, como também suas ações estão longe de ser aquilo que proferem, falam de bondade, mas não vivem nela.Mesmo uma peça tão antiga, faz-de tão atual.

O Diabo é conhecido por ser o pai da mentira, enganador, mas apesar disso, dentro do auto, ele é verdadeiro com as almas, lhes dando o real motivo de sua embarcação ser em um dos lados. Podemos ver isso, quando ele revela as ações do Corregedor, um homem da Magistratura, que há tempos vinha manipulando a lei.

CORREGEDOR
Oh! Videtis qui petatis (Vede que pedis)
Super jure magestatis (algo acima do direito de majestade)
Tem o vosso mando vigor?
DIABO
Quando éreis ouvidor
Nonne accepistis rapina? (não aceitaste suborno?)
Pois ireis agora à bolina (à vela)
Onde a nossa pessoa for...
Oh! E que isca é esse papel
Para um fogo que eu cá sei!
CORREGEDOR
Domine, memento mei! (Senhor,(Deus) lembrai-vos de mim)
CORREGEDOR
Sempre ego justitia fecit. (Eu sempre agi com justiça)
DIABO
E as peitas dos judeus (peitas = peitos das aves; subornos)
Que a vossa mulher levava?

Atualmente, muitas pessoas cometem pecados e atribuem a culpa ao diabo, sendo que, cada tem um liberdade sobre seu atos, e isso que chama a atenção sobre o Corregedor, mesmo com toda a sua corrupção em vida, reza a Deus, para que em seus últimos momentos, lembre-se dele.

O Parvo, nomeado Joane, é alguém que também chama a atenção na história, por sua falta de conhecimento e ignorância, mas ao mesmo tempo, por uma inocência atípica. Até os dias atuais, temos pessoas assim, sem títulos de posse, ou conhecimentos, mas que com um coração puro, servem a Deus, e por isso, assim como o Parvo, são salvos.

Uma das personagens que vai ao inferno, é uma feiticeira e alcoviteira chamada Brisida. Ela incentiva as meninas no caminho da prostituição.
Virgo significa virgem, e seiscentos a quantidade de homens que foram enganados por sua mentira, quando dizia que as meninas entregues a eles, eram virgens.
Brisida também vendia meninas aos homens de grande poder religioso, que eram pecadores também,da mesma forma.
A personagem não quer embarcar ao inferno e tenta de todas as formas convencer o anjo, mas ela possui um histórico muito forte com seus pecados, que acumulados em sua vida, e sem nenhum arrependimento, trouxeram sua condenação por prostituição e feitiçaria.
Atualmente, vemos cada vez mais garotas influenciadas a entrarem nesse mundo, e muitas até são forçadas, por homens comuns, mas também muitos padres, pastores e homens que se dizem ser mensageiros de Deus.
                              
Temos também um personagem muito importante, que acha que pode entrar no céu com bens acumulativos, orações que foram feitas por ele, e status social, mas ao final, entende sua condenação e diz:

“Oh triste! Enquanto vivi
Não pensei que seria: 
Pensei que era fantasia!
Pensava ser adorado, 
Confiei no meu estado
E não vi que me perdia."

Muitas pessoas acreditam que ter mais, significa a passagem para o céu, mas totalmente enganadas, pois o que faz entrar não é o acúmulo de bens, e sim suas ações em vida. Pode-se perceber a ideia que o autor desejou mostrar: um título não serve para tornar alguém puro e nem levar ao céu.

Há um outro personagem que é muito criticado pela sua infidelidade, por viver uma vida dupla, que não condizia com as coisas que ele pregava; um Frade caracterizado como “homem cortesão”; seu relacionamento com Florença (amante) revela-nos sua proximidade à corte e o conhecimento que detém de esgrima revelando que não vivia de acordo com o catolicismo. Após morrer, acredita ser digno de entrar no céu, por ser um padre, mas acaba embarcando ao inferno, juntamente com sua mulher. Um dos trechos que demonstra sua imoralidade:

DIABO
Para aquele fogo ardente,
Que não temestes vivendo.
FRADE
Juro a Deus que não te entendo!
E este hábito, de nada vale? (as veste religiosas)”

Para exercer a função de um líder religioso, vai muito além de vestimentas específicas, está condicionado ao comportamento, exemplo que é dado aos fiéis, grande parte das pessoas falam, falam, mas não vivem aquilo que ensinam.

Os últimos personagens são os Quatro Cavaleiros, homens das Cruzadas que morrendo falando sobre a fé Cristã, em luta contra os Mouros.
Os personagens carregam consigo uma cruz, símbolo católico que faz referência a Cristo, e levam também espadas e escudos que representam a luta pela expansão do cristianismo.
O Diabo não tem discurso acusador para eles, pois morreram por amor a Cristo; Já o Anjo, os reconhece e diz que já os esperava, deixando assim que embarquem ao paraíso.

A música cantada pelos quatro cavaleiros nos remota ao pensamento de Gil Vicente de que, cada pessoa será julgada após sua morte, pelo seus atos em vida.

Gil Vicente encontrou dentro da comicidade, uma forma de criticar os atos das pessoas de sua época, mesmo quando referia-se à uma religião ou instituição, falava da conduta da pessoa que frequentava esse ambiente, não a religião ou a Igreja.




Jeniffer Viana

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