RELAÇÃO INTERTEXTUAL ENTRE ARTES: POESIA RETRATO, DE CECÍLIA MEIRELES E PINTURA AS VELHAS, DE GOYA
É evidente a existência de uma relação entre as diferentes manifestações da arte. “Pintores, escultores, músicos, poetas, são levitas do mesmo templo. Servem, senão ao mesmo deus, pelo menos a divindades congêneres”. A correspondência entre pintura e poesia vem desde os tempos remotos e é alvo de pesquisas de vários estudiosos,Durante séculos, pintores buscaram suas inspirações nos temas literários e poetas tentaram pôr no papel – por meio das palavras – as imagens que as artes visuais ofereciam. Mas, mesmo sendo muito próximas, a literatura e as artes visuais, bem como a música.
A seguir, destacamos o poema Retrato, de Cecília Meireles
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Também é importante observar uma imagem da pintura elaborada por Goya, pois assim como o poema, é um texto base para as análises desse artigo.
As
Velhas, GOYA.
O
eu-lírico, nas duas primeiras estrofes do poema, expõe tanto seu aspecto
físico, como o sentimento interior motivado pela passagem do tempo. Percebemos
que, com o passar do tempo, o autor sentiu esse vazio provocado pela velhice,
pelo sentimento de tristeza e melancolia, que é marcado no último verso da
primeira estrofe “nem o lábio amargo”.
Em
As velhas, de Goya, há a representação de duas senhoras, que estão se olhando
no espelho, como que tendo o mesmo sentimento e como se elas próprias fossem o
eu-lírico que Cecília descreve em seu poema. O espelho mostra a realidade do
tempo presente, mas parece que elas vivem presas ao passado pelo tipo de
vestimentas que usam: vestidos de festa que não condizem com o estágio em que
vivem, pois, assim como os adornos, seriam mais adequados às jovens. Voltando
ao poema, em sua segunda estrofe, o eu-lírico fala do aspecto de suas mãos,
“tão paradas e frias e mortas”, que remete ao contraste das mãos juvenis, sempre
em movimento, em luta pelos objetivos e o sangue correndo fortemente nas veias.
Traz-nos, também, uma visão adiantada da morte, pois quando morremos nossas
mãos logo ficam “frias e mortas”. O poema apresenta os fatos numa linha
gradativa que vai da vida para a morte: primeiro as mãos perdem as forças e os
movimentos, indicando a falta de energia para o trabalho e para a luta pelo
futuro; depois vem a desaceleração que culmina com o estado de estagnação das
mãos paradas e frias que podem ser associadas à morte.
Na
pintura, as mãos das mulheres também estão em evidência e apresentam as marcas
do tempo que passou. Na última estrofe, o eu-lírico reafirma a transitoriedade
da vida em “Eu não me dei por essa mudança”, significa que o tempo passa e
muitas vezes não percebemos, uma transformação que se instaura de forma “tão
simples, tão certa, tão fácil”, ou seja, a velhice é algo que vem naturalmente,
é simples e fácil, não precisamos fazer nada para que ela aconteça, e é algo
certo, natural, pois todos os seres humanos estão sujeitos a essa fase da vida.
Nos
últimos versos do poema, o eu-lírico faz um questionamento: “- Em que espelho
ficou perdida/ a minha face?”, o espelho seria o momento em que ele perdeu a
sua vitalidade, a sua face juvenil e sua vida, pois para o eu-lírico, a velhice
tem ligação com a morte, e a face do presente denuncia essa juventude perdida.
De forma análoga, as senhoras da pintura, parecem estar se olhando no espelho e
fazendo o mesmo questionamento, que é demonstrado no espelho pela pergunta
“¿Qué tal?”. Ainda na mão de uma das senhoras, percebemos um pequeno objeto,
talvez um retrato de quando era jovem, ou de um antigo amor dos tempos
passados, quando o coração ainda era aberto e expunha seus sentimentos.
O
título do poema "Retrato" se encaixa perfeitamente com o sentido do
texto, pois em um retrato temos nossa imagem cristalizada, estática, e o
eu-lírico deseja essa imagem de um determinado momento, mas não se dá conta da
implacável do tempo.
Para
a pintura, outra possibilidade de leitura é da prospecção da velhice através do
espelho, como se as senhoras ainda fossem jovens e a imagem pintada, seria
aparência que as mesmas terão assim que alcançarem a velhice. Ambos os artistas
utilizam-se de recursos para representar os sentimentos de tristeza e
melancolia: Cecília faz uso da repetição das palavras “assim” e “e” para dar ao
poema um tom mais lento, sentido ampliado pelo uso dos inúmeros sons nasais, e
da anáfora “nem” para significar a mudança imperceptível da passagem do tempo; já
Goya utiliza-se do recurso das cores e formas para demonstrar esses
sentimentos, em sua pintura há o uso de cores frias e escuras,
predominantemente usa a cor cinza, que tradicionalmente está associado à idade
avançada e ao planeta Saturno, passando ao leitor a impressão de algo sombrio e
obscuro geralmente sentidos e sentimentos negativos relacionados à morte.
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